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Acute inflammatory response via neutrophil activation protects against the development of chronic pain

Resenha escrita por: Thayanne Brasil Barbosa Calcia

A dor crônica é um problema de saúde pública global, gerando altos gastos médicos, bem como incapacidade laboral. Segundo a International Association for the Study of Pain (IASP), ela é caracterizada pela presença de dor persistente ou recorrente por mais de três meses, como ocorre em parte dos pacientes com DTM. Ela pode ocorrer independente do desaparecimento da lesão inicial que a motivou e os mecanismos que explicam a transição da dor aguda para a crônica ainda não foram totalmente elucidados. Um robusto corpo de evidências tem sido acumulado de forma a entender a dor crônica como uma desordem neuroinflamatória com participação de células imunes, como neutrófilos e células gliais, em processos de sensibilização periférica e central. 

O artigo recém-publicado no renomado periódico Science Translational Medicine, pelo grupo liderado pela Dra. Luda Diatchenko, trouxe importantes achados sobre esse assunto. O objetivo do estudo foi investigar associações entre alterações na expressão de genes de células do sistema imune que pudessem explicar os sintomas de dor lombar persistente após três meses do primeiro episódio de dor na região. A escolha do tempo de avaliação foi realizada pela própria definição de dor crônica pela IASP. 

A metodologia do artigo é bastante robusta e baseia-se em três principais pilares: 

A análise do transcriptoma das células imunes de sangue periférico de indivíduos com dor lombar. O transcriptoma representa a leitura de todos os transcritos de uma célula, ou seja, revela a expressão de seus genes.
A realização de diferentes modelos de dor em animais, sendo eles: a constrição do nervo ciático (dor neuropática), a indução de dor miofascial lombar por injeção de Nerve Growth Factor (NGF)  e a injeção de Complete Freund’s Adjuvant (CFA), uma substância que induz inflamação.
A análise de biobanco com dados de pacientes com dor lombar do Reino Unido.

Os autores dividiram os pacientes em dois grupos: curados (sem dor após episódio prévio) e persistentes (dor lombar ainda presente após 3 meses do episódio agudo). Ambos os grupos foram avaliados em dois momentos, sendo eles o episódio de dor inicial e a segunda avaliação, três meses após. Os resultados mostraram que havia uma diferença marcante na expressão gênica entre os dois grupos de pacientes, com alteração na regulação de mais de 1700 genes entre a primeira e a segunda avaliação dos pacientes livres de dor. Isso representa mais da metade de todo o genoma presente nessas células, indicando alta atividade transcricional. De forma interessante, os paciente com dor persistente não apresentaram tais mudanças na expressão gênicadas células de sangue periférico. Traçando um comparativo, é como se as células imunes de pacientes com dor crônica tivessem entrado em um estado estacionário, menos dinâmico. 

Além da expressão gênica, também houve mudança nas populações celulares, especialmente de neutrófilos. Observou-se que os indivíduos livres de dor apresentaram uma maior resposta inflamatória basal em comparação aos que apresentaram dor persistente, bem como uma maior diferença entre o estado basal e o observado na segunda visita quando comparado com os com dor persistente. Ou seja, a inflamação parece ser benéfica no início do episódio doloroso, sendo paulatinamente diminuída até sua resolução nos pacientes livres de dor. Já os pacientes com dor crônica tiveram dificuldade em desenvolver essa resposta inflamatória inicial, bem como sua interrupção.  

De forma interessante, esses achados foram corroborados com amostras obtidas de participantes do estudo OPPERA, importante ensaio no campo da DTM, mostrando que indivíduos com DTM dolorosa crônica apresentavam menor expressão de genes envolvidos na ativação e degranulação de neutrófilos durante o episódio inicial de dor quando comparados àqueles que tiveram a dor resolvida. É importante salientar que, a escolha de pacientes com DTM foi justificada pela grande comorbidade clínica com a dor lombar, além de terem herança genética por vezes compartilhada.

Para validar esses achados, os pesquisadores utilizaram diferentes medicamentos nos modelos de dor citados anteriormente: dexametasona (corticoide), diclofenaco (AINE), gabapentina (anticonvulsivante utilizado como analgésico de ação central), morfina (opioide) e lidocaína (anestésico local). Todos os medicamentos diminuíram a alodinia experimental durante o curso de sua administração, contudo apenas o diclofenaco e a dexametasona aumentaram o tempo necessário para a resolução da dor. Ou seja, a inibição da inflamação inicial nestes animais retardou a sua recuperação, cronificando sua dor. De forma interessante, quando os pesquisadores eliminaram os neutrófilos dos animais submetidos ao modelo de dor inflamatória com CFA, eles conseguiram reproduzir padrão de alodinia mecânica similar ao encontrado após a injeção de dexametasona. Finalmente, a injeção de neutrófilos ou de suas proteínas (S100A8 e S100A9) no sítio da lesão de animais que receberam dexametasona foi capaz de acelerar a resolução da dor nesses animais, confirmando o papel inibidor dessas células imune sobre o processo de cronificação da dor. 

Considerando o papel benéfico dos neutrófilos na resolução da dor, os autores traçaram a hipótese de que medicamentos inibidores da resposta inflamatória inicial podem estar envolvidos com a cronificação da dor. Para testá-la, eles utilizaram dados de pacientes com LBP presentes em um biobanco e observaram que, em todos os modelos de regressão linear, apenas o uso de AINEs se relacionou com a cronificação da dor. Ainda, os autores resgataram dados de exames séricos e mostraram uma relação inversa entre a contagem de neutrófilos durante o episódio de dor aguda e a persistência desta, ou seja, pacientes que tinham menos neutrófilos estavam mais propensos a ter dor crônica.

Esse estudo traz à tona uma interface por vezes pouco discutida do processo inflamatório: o reparo. Como a própria Luda Diatchenko declarou recentemente em um podcast do grupo Science, os achados do estudo são contraintuitivos. O controle da dor aguda sempre foi visto como algo central por sua característica danosa, mas parece, na verdade, ser uma resposta inicial puramente adaptativa. Trata-se de uma importante quebra de paradigma, principalmente quando consideramos a forma como as dores musculoesquetéticas têm sido tratadas, principalmente visando a inibição da inflamação. Segundo os dados do estudo, não somente a presença da inflamação é importante, mas também a forma como ela se desenvolve, já que a inibição do neutrófilo em fase inicial parece ter relação íntima com a atividade celular fisiológica posterior.  É importante salientar, contudo, que os achados precisam ser confirmados através da realização de ensaios clínicos, haja vista a limitação intrínseca ao desenho experimental desse estudo.

Uma importante contribuição desse artigo para a clínica é o holofote sobre as terapias voltadas para modulação da resposta imune, a exemplo dos agregados plaquetários usados em DTM articulares. Assim, o uso de terapias regenerativas passa a ser um alvo ainda maior de interesse pela sua capacidade de direcionar a resposta inflamatória ao reparo tecidual. No mais, farmacologicamente falando, nunca fez tanto sentido tratar a dor com analgésicos.



Referência:

Parisien M, Lima LV, Dagostino C, El-Hachem N, Drury GL, Grant AV, Huising J, Verma V, Meloto CB, Silva JR, Dutra GGS, Markova T, Dang H, Tessier PA, Slade GD, Nackley AG, Ghasemlou N, Mogil JS, Allegri M, Diatchenko L. Acute inflammatory response via neutrophil activation protects against the development of chronic pain. Sci Transl Med. 2022 May 11;14(644):eabj9954. doi: 10.1126/scitranslmed.abj9954. Epub 2022 May 11. PMID: 35544595.
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Thayanne Brasil Barbosa Calcia

  • Especializanda em DTM e Dor Orofacial (FMP/Unifase – Petrópolis, RJ)
  • Especialista em Estomatologia (São Leopoldo Mandic – Rio de Janeiro, RJ)
  • Mestre em Farmacologia (Universidade Federal do Ceará, CE)
  • Doutora em Ciências Biológicas (Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ)
  • Professora Adjunta do Curso de Odontologia (FMP/Unifase – Petrópolis, RJ)
  • Pesquisadora vinculada ao Grupo de Estudos em Dor Crônica (FMP/Unifase – Petrópolis, RJ)
Email: thayannecalcia@prof.unifase-rj.edu.br
Instagram: @farmacodontologia​