Entrevista

Profa. Dra. Juliana Geremias Chichorro

Considerando a complexidade do sistema trigeminal, como podemos compreender de uma maneira objetiva as particularidades da dor orofacial?  

Para compreender dor orofacial, inicialmente é preciso conhecer a anatomia básica do sistema sensorial trigeminal. Cada um dos ramos do nervo trigêmeo inerva estruturas com funções e características distintas e, portanto, cada ramo pode ser associado com dores que diferem quanto à natureza e origem. Por exemplo, a dura-máter recebe inervação principalmente do ramo oftálmico, o que explica o papel fundamental desse ramo nas dores de cabeça. Por outro lado, condições dolorosas como a Neuralgia do Trigêmeo e Dor Idiopática Facial Persistente afetam principalmente o ramo maxilar. Já o ramo mandibular está associado às dores que afetam a articulação temporomandibular, bem como à Síndrome da Ardência Bucal, cuja etiologia ainda não foi esclarecida.  Também é importante identificar as particularidades da inervação fornecida para cada estrutura. Como exemplo, podemos citar a polpa dentária, que representa um dos tecidos mais inervados do corpo. A polpa é basicamente formada por vasos sanguíneos e fibras nervosas do tipo C - os nociceptores (sensores de dor), o que justifica a dor intensa resultante de procedimentos que envolvem a manipulação da polpa vital. O conhecimento da inervação periférica precisa ser seguido pelo entendimento de todo o “caminho da dor orofacial”, que envolve estruturas periféricas, como o gânglio do trigêmeo, e centrais, especialmente o núcleo sensorial trigeminal Pars Caudalis. A partir desse núcleo, a informação gerada na periferia será levada a diferentes estruturas cerebrais que forneceram informações sobre o aspecto-sensorial discriminativo e afetivo-motivacional da dor. Evidencias recentes indicam que a dor proveniente do sistema sensorial trigeminal causa maior ativação de áreas cerebrais envolvidas no processamento das emoções. Esse achado pode nos ajudar a entender a forte relação que existe entre dores orofaciais e transtornos emocionais, assim como também representa uma particularidade adicional desse sistema.  

De uma maneira geral, o dia a dia da prática clínica da Odontologia envolve muitos procedimentos que requerem manejo da dor trans e pós-operatória. Com base nos seus estudos, qual seria uma boa recomendação para controle da dor pós-operatória nas intervenções na região orofacial? Isso poderia envolver também um preparo prévio do paciente com uma analgesia preventiva?   

O controle da dor pós operatória é fundamental para dar conforto ao paciente, bem como para reduzir o risco de cronificação da dor. O emprego de anti-inflamatórios não esteroidais (AINES) promove um controle satisfatório da dor decorrente de grande parte das intervenções realizadas pelo cirurgião-dentista. O controle da dor, quando necessário, pode ser otimizado com a associação de AINES com analgésicos não opioides, como, por exemplo, a dipirona ou o paracetamol. Inclusive, foi lançado recentemente no mercado um medicamento que associa o AINE ibuprofeno com o analgésico paracetamol. O emprego de analgésicos opioides fracos é recomendado em casos de dor moderada a severa ou para pacientes em que o uso de AINES é contraindicado.  

Na minha opinião, a analgesia preemptiva ainda é pouco empregada na Odontologia, devido a vários fatores, principalmente, falta de evidência científica de eficácia e segurança, resultados contraditórios e falta de protocolos padronizados. Isso gera inúmeras dúvidas aos profissionais:  Será que é seguro? Será que é necessário? Qual fármaco devo utilizar? Qual o regime posológico? Por outro lado, tenho observado um interesse crescente nessa área, bem como um maior número de publicações, o que é fundamental para a construção da evidencia científica.  Acredito que a analgesia preemptiva é de grande utilidade na odontologia, mas ainda são necessários mais estudos, elaboração de protocolos e capacitação dos profissionais para o emprego dessa modalidade com eficácia e segurança. Por fim, também é válido ressaltar a importância do controle da dor transoperatória, que pode ser alcançado através do uso do anestésico local mais adequado ao paciente e ao procedimento, o qual, se necessário, pode ser associado a um protocolo de analgesia preemptiva.


Os seus trabalhos científicos, em grande parte, se concentram no estudo da Neuralgia Trigeminal (NT). Recentemente, houve a publicação do ICOP, propondo uma classificação atualizada das diferentes dores orofaciais, incluindo a NT como uma dor decorrente de lesão ou doença que afeta o V par craniano. Quais são os prováveis mecanismos que a explicam?   

De acordo com a classificação do ICOP, a NT Clássica é aquela causada por uma compressão neurovascular, principalmente pela artéria cerebelar superior, que leva a alterações morfológicas nas raízes nervosas. Em situações em que a compressão nervosa com alterações morfológicas não é detectada, a NT é classificada como idiopática. A NT idiopática tem a mesma apresentação clínica da NT clássica, entretanto sua causa é desconhecida. Existem ainda formas de NT que são classificadas como “secundárias”, isto é, que são associadas a outras causas primárias, como, por exemplo, a presença de tumores intracranianos ou associadas à esclerose múltipla. Estima-se que 2 a 5 % dos pacientes com esclerose múltipla desenvolvem NT. Portanto, o diagnóstico diferencial é fundamental para o tratamento adequado do paciente. Em relação à fisiopatologia da NT clássica, a hipótese mais aceita é chamada “hipótese da ignição”. Sabe-se que a compressão vascular causa danos aos neurônios e perda da bainha de mielina. Os neurônios, agora justapostos, ficam hiperexcitáveis e geram disparos ectópicos espontaneamente ou em resposta a estímulos não nocivos. Os disparos ectópicos geram atividade neuronal prolongada e afetam os neurônios adjacentes causando excitabilidade cruzada, fenômenos subjacentes ao paroxismo da dor. É bastante provável que a persistência dos estímulos periféricos resulte em plasticidade do SNC. Nesse sentido, estudos recentes têm indicado alterações em estruturas cerebrais em pacientes com NT clássica, mas o significado e a implicação clínica desses achados ainda precisam ser mais bem compreendidos.  

Ainda sobre a NT, qual é a atual recomendação farmacológica para otratamento dessa condição? Poderíamos incluir, dentre os possíveis fármacos a serem utilizados, aqueles administrados perifericamente como a toxina botulínica e/ou injeções tópicas de anti-inflamatórios esteroidais?   

O anticonvulsivante Carbamazepina é o único medicamento aprovado para o tratamento da NT. Apresenta alta eficácia, promovendo alívio da dor e redução da frequência das crises em cerca de 70% dos pacientes. Entretanto, alguns pacientes não respondem ao tratamento, enquanto outros se tornam refratários ao longo do tempo.  A oxcarbazepinaé um derivado da carbamazepina que apresenta melhor perfil de segurança, porém faltam estudos comparativos de eficácia dos dois medicamentos em pacientes com NT. A principal limitação do uso desses medicamentos são os efeitos adversos, que são frequentes e incluem cansaço, sonolência, perda de memória e dificuldade de concentração. Em caso de falha ou não tolerância a esses anticonvulsivantes, outros são indicados, tais como pregabalina, gabapentina e lamotrigina. Estudos sugerem que uma maneira eficaz de reduzir a dose e, consequentemente, os efeitos adversos dos anticonvulsivantes é associa-los com tratamentos locais. Nesse sentido, estudos tem demonstrado que a injeção de toxina botulínica nos pontos gatilho promove alivio da dor em pacientes com NT quando utilizada isoladamente, mas que o efeito pode ser mais pronunciado se associada a alguma terapia sistêmica. Apesar disso, é importante ressaltar que a toxina botulínica não representa a primeira linha de tratamento, sendo indicada apenas para pacientes refratários. Além disso,  mais estudos são necessários para a determinação da eficácia, segurança e para o estabelecimento dos protocolos mais adequados de aplicação da toxina botulínica. Em relação aos anti-inflamatórios esteroidais, definitivamente são necessários mais estudos para determinar o benefício da sua utilização no tratamento da NT.   

Sabemos que o processamento da dor sofre influência de diferentes aspectos dentro de um contexto biopsicossocial. Como as características psicossociais, como ansiedade, por exemplo, podem influenciar a experiência dolorosa na NT?  

Existe uma relação bidirecional entre transtornos emocionais (e.g. ansiedade, depressão) e dor crônica; isto é, pacientes que sofrem de ansiedade ou depressão tem risco elevado de desenvolver dor crônica, assim como pacientes que sofrem de dor crônica apresentam maior risco para o desenvolvimento de transtornos emocionais.   Estudos clínicos mostram que pacientes com NT apresentam risco aumentado de desenvolver ansiedade e/ou depressão. É possível reproduzir esse achado clínico em animais de laboratório. Estudos do nosso grupo mostram que ratos submetidos à constrição do nervo infraorbital (modelo animal para o estudo da NT) desenvolvem comportamento do tipo ansioso como uma consequência do estado de dor crônica. Esse resultado é corroborado por vários estudos laboratoriais e clínicos em diferentes condições de dor crônica. Portanto, atualmente existe um consenso de que a dor crônica afeta a saúde metal. Entretanto, na prática clínica, considera-se que os transtornos emocionais em pacientes com dor crônica ainda são subdiagnosticados e subtratados. Isso reforça a importância do tratamento interdisciplinar do paciente com dor crônica e sugere um olhar cuidadoso para sua saúde mental.  

Do seu ponto de vista, quais as perspectivas futuras para as pesquisas? E quais os consequentes avanços clínicos na compreensão e manejo do paciente com NT?   

O melhor entendimento da fisiopatologia da NT permitiu a identificação de alvos com potencial para o controle mais eficiente da dor. Nesse sentido, um bloqueador seletivo de canais de sódio expressos em neurônios foi desenvolvido (vixotrigine) e atualmente está sendo testado em pacientes que sofrem de NT. Os dados preliminares são promissores, pois indicam boa tolerabilidade e eficácia. Certamente, precisamos de mais opções terapêuticas que sejam eficazes e seguras para o tratamento de NT. Para isso, são necessários estudos que investiguem os mecanismos da doença, identifiquem alvos e avaliem eficácia e segurança de novos medicamentos ou de medicamentos que já estão em uso. Em resumo, precisamos de mais estudos que avaliem todos os aspectos da NT. Outro grande avanço na área foi a classificação da NT publicada no ICHD-3 e ICOP. Esses documentos servem como base para o correto diagnóstico da NT, além de fornecer informações que podem orientar o clínico na determinação do fenótipo do paciente. Sabe-se, por exemplo, que pacientes com NT clássica que apresentam dor contínua entre os paroxismos tendem a ter um prognóstico menos favorável. Ademais, a classificação facilita a realização de estudos clínicos padronizados e que permitam comparação. Por fim, a possibilidade de estratificar os pacientes de acordo com o fenótipo permitirá avaliar as causas e consequências dessas variações, bem como a sensibilidade dos diferentes grupos de pacientes à farmacoterapia. 
 
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Profa. Dra. Juliana Geremias Chichorro

Graduação em Odontologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1998)

Mestrado em Farmacologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2002)

Doutorado em Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) (2006)

Pós-doutorado no período de 2007-2009 em Farmacologia Médica na Universidade do Arizona (EUA) e no Departamento de Farmacologia da UFS

Atualmente é professora do Departamento de Farmacologia, nível Associado, da UFPR e orientadora de Mestrado e Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Farmacologia da UFPR. Tem experiência na área de Farmacologia da Dor e é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq (PQ2).