Caderno SBDOF

Caderno 19- Diagnóstico de dores orofaciais de origem pulpar: uma análise profunda para orientar intervenções precisas

Autor: Letycia Accioly Simões Coelho; Rodrigo Ricci Vivan; Marco Antonio Hungaro Duarte

Entre as dores orofaciais de origem dentária, destaca-se as dores associadas às inflamações/infecções da polpa e tecidos periapicais, frequentemente intensas e um dos motivos mais comuns para a busca de atendimento emergencial por parte dos pacientes.

O diagnóstico dessas condições representa um desafio complexo, não sendo passível de obtenção por meio de uma única informação isolada. Ao contrário, é resultante da análise e interpretação de diversas informações e exames, cujos dados apontam para uma hipótese diagnóstica (2). O entendimento da progressão das patologias envolvendo a polpa e tecidos periapicais é essencial para todos os cirurgiões-dentistas, inclusive os especialistas em DTM e dor orofacial, os quais frequentemente podem se deparar com esses pacientes. Portanto, é crucial que sejam capazes de detectar precocemente essas condições, evitando procedimentos odontológicos invasivos e orientando os pacientes a procurarem terapia da dor (3), (4).

A polpa dental, constituinte de tecido conjuntivo frouxo, encontra-se no interior de uma cavidade envolta por dentina5. Essas estruturas, polpa e dentina, compõem o complexo dentino-pulpar, evidenciando que alterações em uma delas afetam a outra reciprocamente6. Assim como outros tecidos conjuntivos no organismo, a polpa dental responde a agressões por meio de inflamação, sendo a etiologia bacteriana a principal causadora (7). A inflamação inicia-se antes da exposição direta da polpa às bactérias, pois produtos bacterianos agressivos são liberados na dentina e difundem-se pelos túbulos dentinários (8-10).

A resposta inflamatória inclui vasodilatação e formação de edema. Contudo, devido à localização da polpa dentro de uma cavidade de dentina, uma estrutura mineralizada e não expansível, o tecido pulpar inflamado exerce pressão sobre fibras nervosas. Nessa fase inicial, a pressão incide sobre fibras mielinizadas A∂, cujo limiar de excitabilidade é reduzido, facilitando sua ativação (11-13). Isso resulta em hipersensibilidade, denominada PULPITE REVERSÍVEL (14-15), com respostas rápidas a estímulos que normalmente não causam dor, como frio, diferindo do padrão em uma polpa saudável (reposta frente ao teste de sensibilidade ao frio acontece cerca de 10 a 15 segundos após a sua aplicação) (6), apesar de ambas cessarem imediatamente após sua remoção.

Os demais testes de palpação e percussão, apresentam respostas negativas já que não há comprometimento periodontal (17). Nesse momento, o tratamento é a eliminação da causa por meio da remoção das lesões de cárie e restauração/reabilitação do elemento dentário (18). Em caso de ausência de tratamento, a concentração de produtos microbianos aumenta, levando a uma inflamação mais intensa (4), (16). As fibras nervosas A∂ começam a degenerar, as fibras do tipo C começam a ser mais intensamente estimuladas (19), desencadeando uma dor pulsátil, espontânea, exacerbada frente ao teste de sensibilidade ao frio (imediata e de grande intensidade e que demora a cessar após a sua remoção), característica da PULPITE IRREVERSÍVEL (14), (15), (20-22), na qual o tratamento de biopulpectomia deve ser realizado. Observa-se também que, apesar de não haver comprometimento periodontal, é comum haver dor frente à palpação e percussão devido a ativação de mecanorreceptores.

A compressão sobre vasos sanguíneos resulta na redução do fluxo sanguíneo (23), ocasionando hipóxia tecidual, acúmulo de produtos tóxicos e queda de pH, culminando na necrose focal da polpa, iniciando o quadro de NECROSE PULPAR (4). A necrose da polpa torna-a suscetível à invasão microbiana pela ausência da capacidade de defesa, que acontece gradualmente no sentido cervico-apical, levando à contaminação e necrose total da polpa,  momento em que a resposta frente aos testes de sensibilidade ao frio passam a ser negativas (16), (20), (24) e que há a necessidade de realizar a necropulpectomia.

Conforme o processo de necrose vai se aproximando do forame apical, os tecidos perirradiculares são afetados e reagem para tentar eliminar os microorganismos, resultando na resposta inflamatória conhecida como PERIODONTITE APICAL (25), (26);  com respostas clínicas que refletem alterações tanto na polpa (resposta negativa ao teste de sensibilidade) quanto no periodonto (resposta positiva aos testes de palpação e percussão).

A periodontite apical pode ser sintomática ou assintomática (27), processo que depende do equilíbrio entre o número/virulência dos microrganismos e as defesas do organismo (28). Para evitar a disseminação da infecção, os tecidos periodontais atuam como barreira, atraindo células de defesa para conter o avanço dos microrganismos, que desencadeia uma resposta inflamatória no local (25), (26), (28).

 Sabe-se que a maioria dos microrganismos presentes no canal são bactérias anaeróbicas Gram – (30), e que ao saírem do canal são combatidas pelas células de defesa do organismo e isso faz com que tenha a liberação de lipopolissacarídeo (LPs), um produto tóxico da sua  membrana plasmática que, entre outras coisas, induz uma inflamação e a longo prazo, reabsorção óssea apical conhecida por lesão periapical, que podem ser visíveis na radiografia ou tomografia como uma área radiolúcida/hipodensa, respectivamente, adjacente ao ápice dentário (31).

O equilíbrio entre defesas do organismo e microrganismos é crucial para as patologias endodônticas (28). A periodontite apical não resolvida, em fase inicial ou quando já esta instalada a certo tempo, pode evoluir para um ABCESSO APICAL (18),(30), caracterizado por dor intensa à palpação e percussão. Isso ocorre devido a atração de neutrófilos e macrófagos visando à eliminação de bactérias através da fagocitose, em que há o desenvolvimento de uma inflamação purulenta as custas desse processo (32).

O Abscesso Apical pode ser agudo, o qual se divide em três fases: apical, intra-óssea e submucosa. A evolução para as fases subsequentes ocorre rapidamente em caso de desequilíbrio microrganismo/defesa do organismo, exigindo intervenção emergencial devido ao risco iminente de danos à vida, em especial na segunda fase em que a coleção purulenta se encontra intra-óssea (30). 

Caso o equilíbrio seja restaurado, o abcesso apical agudo em primeira fase pode evoluir para um Abcesso apical crônico caracterizado pela presença de uma fístula intra ou extra-oral para drenagem da coleção purulenta, sem dor intensa e que pode permanecer ativo, com fases de remissão da fistula, caso o paciente não procure atendimento (18).

Apesar de patologias pulpares e perirradiculares serem comuns no consultório odontológico, nem sempre o diagnóstico é um processo fácil, principalmente devido as nuances e diferentes padrões de resposta do paciente18.  No entanto, uma abordagem cuidadosa, sistemática e a utilização de ferramentas diagnósticas adequadas permitem a detecção precoce de condições que afetam a saúde bucal. A integração dessas práticas na rotina odontológica contribui para resultados bem-sucedidos e a manutenção da saúde bucal global dos pacientes.


 
 
 
 
REFERÊNCIAS
  1. Khan AA, Diogenes A. Pharmacological Management of Acute Endodontic Pain. Drugs. 2021 Sep;81(14):1627-1643. doi: 10.1007/s40265-021-01564-4. Epub 2021 Oct 7. PMID: 34618315.
  2. Patro S, Meto A, Mohanty A, Chopra V, Miglani S, Das A, Luke AM, Hadi DA, Meto A, Fiorillo L, Karobari MI, Wahjuningrum DA, Pawar AM. Diagnostic Accuracy of Pulp Vitality Tests and Pulp Sensibility Tests for Assessing Pulpal Health in Permanent Teeth: A Systematic Review and Meta-Analysis. Int J Environ Res Public Health. 2022 Aug 4;19(15):9599. doi: 10.3390/ijerph19159599. PMID: 35954958; PMCID: PMC9367848.
  3. Zakrzewska JM. Differential diagnosis of facial pain and guidelines for management. Br J Anaesth. 2013 Jul;111(1):95-104. doi: 10.1093/bja/aet125. PMID: 23794651.
  4. Zanini M, Meyer E, Simon S. Pulp Inflammation Diagnosis from Clinical to Inflammatory Mediators: A Systematic Review. J Endod. 2017 Jul;43(7):1033-1051. doi: 10.1016/j.joen.2017.02.009. Epub 2017 May 17. PMID: 28527838.
  5. Karamifar K, Tondari A, Saghiri MA. Endodontic Periapical Lesion: An Overview on the Etiology, Diagnosis and Current Treatment Modalities. Eur Endod J. 2020 Jul 14;5(2):54-67. doi: 10.14744/eej.2020.42714. PMID: 32766513; PMCID: PMC7398993.
  6. Smith AJ. Pulpal responses to caries and dental repair. Caries Res. 2002 Jul-Aug;36(4):223-32. doi: 10.1159/000063930. PMID: 12218270.
  7. Lin LM, Ricucci D, Saoud TM, Sigurdsson A, Kahler B. Vital pulp therapy of mature permanent teeth with irreversible pulpitis from the perspective of pulp biology. Aust Endod J. 2020 Apr;46(1):154-166. doi: 10.1111/aej.12392. Epub 2019 Dec 21. PMID: 31865629.
  8. Brännström M, Lind PO. Pulpal response to early dental caries. J Dent Res. 1965 Sep-Oct;44(5):1045-50. doi: 10.1177/00220345650440050701. PMID: 5213008.
  9. Reeves R, Stanley HR. The relationship of bacterial penetration and pulpal pathosis in carious teeth. Oral Surg Oral Med Oral Pathol. 1966 Jul;22(1):59-65. doi: 10.1016/0030-4220(66)90143-5. PMID: 5220026.
  10. Langeland K. Tissue response to dental caries. Endod Dent Traumatol. 1987 Aug;3(4):149-71. doi: 10.1111/j.1600-9657.1987.tb00619.x. PMID: 3326722.
  11. Kim S. Microcirculation of the dental pulp in health and disease. J Endod. 1985 Nov;11(11):465-71. doi: 10.1016/S0099-2399(85)80219-3. PMID: 3868691.
  12. Närhi M. The neurophysiology of the teeth. Dent Clin North Am. 1990 Jul;34(3):439-48. PMID: 2197120.
  13. Trowbridge HO. Intradental sensory units: physiological and clinical aspects. J Endod. 1985 Nov;11(11):489-98. doi: 10.1016/S0099-2399(85)80222-3. PMID: 3007649.
  14. Richert R, Ducret M, Alliot-Licht B, Bekhouche M, Gobert S, Farges JC. A critical analysis of research methods and experimental models to study pulpitis. Int Endod J. 2022 Mar;55 Suppl 1:14-36. doi: 10.1111/iej.13683. Epub 2022 Feb 2. PMID: 35034368.
  15. Yu CY, Abbott PV. Responses of the pulp, periradicular and soft tissues following trauma to the permanent teeth. Aust Dent J. 2016 Mar;61 Suppl 1:39-58. doi: 10.1111/adj.12397. PMID: 26923447.
  16. Mejàre IA, Axelsson S, Davidson T, Frisk F, Hakeberg M, Kvist T, Norlund A, Petersson A, Portenier I, Sandberg H, Tranaeus S, Bergenholtz G. Diagnosis of the condition of the dental pulp: a systematic review. Int Endod J. 2012 Jul;45(7):597-613. doi: 10.1111/j.1365-2591.2012.02016.x. Epub 2012 Feb 13. PMID: 22329525.
  17. Owatz CB, Khan AA, Schindler WG, Schwartz SA, Keiser K, Hargreaves KM. The incidence of mechanical allodynia in patients with irreversible pulpitis. J Endod. 2007 May;33(5):552-6. doi: 10.1016/j.joen.2007.01.023. Epub 2007 Mar 6. PMID: 17437870.
  18. Barani M, Aliu X, Ajeti N, Asllani L. Assessment of correlation between clinical, radiographic, microbiological, and histopathological examinations in identification of pulpal diseases - a single-centre study. Saudi Dent J. 2023 Jul;35(5):540-546. doi: 10.1016/j.sdentj.2023.05.003. Epub 2023 May 10. PMID: 37520598; PMCID: PMC10373077.
  19. Kim S. Neurovascular interactions in the dental pulp in health and inflammation. J Endod. 1990 Feb;16(2):48-53. doi: 10.1016/S0099-2399(06)81563-3. PMID: 2201743.
  20. Ricucci D, Loghin S, Siqueira JF Jr. Correlation between clinical and histologic pulp diagnoses. J Endod. 2014 Dec;40(12):1932-9. doi: 10.1016/j.joen.2014.08.010. Epub 2014 Oct 12. PMID: 25312886.
  21. Santos JM, Pereira JF, Marques A, Sequeira DB, Friedman S. Vital Pulp Therapy in Permanent Mature Posterior Teeth with Symptomatic Irreversible Pulpitis: A Systematic Review of Treatment Outcomes. Medicina (Kaunas). 2021 Jun 3;57(6):573. doi: 10.3390/medicina57060573. PMID: 34205149; PMCID: PMC8228104.
  22. Asgary S, Eghbal MJ, Bagheban AA. Long-term outcomes of pulpotomy in permanent teeth with irreversible pulpitis: A multi-center randomized controlled trial. Am J Dent. 2017 Jun;30(3):151-155. PMID: 29178761.
  23. Tønder KJ. Vascular reactions in the dental pulp during inflammation. Acta Odontol Scand. 1983 Aug;41(4):247-56. doi: 10.3109/00016358309162331. PMID: 6578666.
  24. Segura-Egea JJ, Gould K, Şen BH, Jonasson P, Cotti E, Mazzoni A, Sunay H, Tjäderhane L, Dummer PMH. Antibiotics in Endodontics: a review. Int Endod J. 2017 Dec;50(12):1169-1184. doi: 10.1111/iej.12741. Epub 2017 Jan 16. PMID: 28005295.
  25. Kakehashi S, Stanley Hr, Fitzgerald Rj. The Effects Of Surgical Exposures Of Dental Pulps In Germ-Free And Conventional Laboratory Rats. Oral Surg Oral Med Oral Pathol. 1965 Sep;20:340-9. doi: 10.1016/0030-4220(65)90166-0. PMID: 14342926.
  26. Möller AJ, Fabricius L, Dahlén G, Ohman AE, Heyden G. Influence on periapical tissues of indigenous oral bacteria and necrotic pulp tissue in monkeys. Scand J Dent Res. 1981 Dec;89(6):475-84. doi: 10.1111/j.1600-0722.1981.tb01711.x. PMID: 6951246.
  27. Yu VS, Messer HH, Yee R, Shen L. Incidence and impact of painful exacerbations in a cohort with post-treatment persistent endodontic lesions. J Endod. 2012 Jan;38(1):41-6. doi: 10.1016/j.joen.2011.10.006. Epub 2011 Nov 17. PMID: 22152618.
  28. Siqueira JF Jr, Rôças IN. Clinical implications and microbiology of bacterial persistence after treatment procedures. J Endod. 2008 Nov;34(11):1291-1301.e3. doi: 10.1016/j.joen.2008.07.028. Epub 2008 Sep 17. PMID: 18928835.
  29. Torabinejad M. Mediators of acute and chronic periradicular lesions. Oral Surg Oral Med Oral Pathol. 1994 Oct;78(4):511-21. doi: 10.1016/0030-4220(94)90046-9. PMID: 7800382.
  30. Siqueira JF Jr, Rôças IN. Microbiology and treatment of acute apical abscesses. Clin Microbiol Rev. 2013 Apr;26(2):255-73. doi: 10.1128/CMR.00082-12. PMID: 23554416; PMCID: PMC3623375.
  31. Rechenberg DK, Galicia JC, Peters OA. Biological Markers for Pulpal Inflammation: A Systematic Review. PLoS One. 2016 Nov 29;11(11):e0167289. doi: 10.1371/journal.pone.0167289. PMID: 27898727; PMCID: PMC5127562.
  32. Baumgartner JC, Siqueira JF, Jr, Sedgley CM, Kishen A. 2008. Microbiology of endodontic disease, p 221–308 In Ingle JI, Bakland LK, Baumgartner JC. (ed), Ingle's endodontics, 6th ed BC Decker, Hamilton, Canada
  33. Siqueira, JF, Jr.Tratamento das infecções endodônticas. Rio de Janeiro: MEDSI, 1997.
WhatsApp Image 2024-06-14 at 12.24.18.jpeg

Letycia Accioly Simões Coelho

 
  • Cirurgiã dentista pela Faculdade de Odontologia de Bauru- Universidade de São Paulo; Especialista na área de endodontia pela APCD/Bauru; Mestre e doutoranda em Ciências Odontológicas com área de concentração em Endodontia pela Faculdade de Odontologia de Bauru- Universidade de São Paulo; Revisora de periódicos nacionais e internacionais da área.
  • Email:  letycia.coelho@usp.br;
  • Instagram: @letyciaaccioly
 
WhatsApp Image 2024-06-14 at 12.41.45 (1).jpeg

Rodrigo Ricci Vivan

 
  • Cirurgião dentista pela Universidade do Sagrado Coração; Especialista na área de endodontia pela APCD/Bauru; Mestrado e livre-docência em Endodontia pela Faculdade de Odontologia de Bauru- Universidade de São Paulo e doutorado pela Universidade Estadual Paulista em -Campus Araraquara; Professor Associado do departamento de Dentística, Endodontia e Materiais Odontológicos da Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo
  • Email:  rodrigo.vivan@fob.usp.br; 
  • Instagram: @endorodrigovivan
 
WhatsApp Image 2024-06-14 at 12.41.45.jpeg

Marco Antonio Hungaro Duarte

  • Cirurgião dentista pela Faculdade de Odontologia de Bauru- Universidade de São Paulo; Especialista na área de endodontia pela APCD/Bauru; Mestrado, doutorado e livre-docência em Endodontia pela Faculdade de Odontologia de Bauru- Universidade de São Paulo; Professor Titular e Chefe do departamento de Dentística, Endodontia e Materiais Odontológicos da Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo; Coordenador do Programa em Ciências Odontológicas Aplicadas e da área de Endodontia do mesmo programa da Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo
  • Email:  mhungaro@fob.usp.br;
  • Instagram: @marcohungaro