Entrevista

Profa. Dra. Juliana Trindade Clemente Napimoga

Volume IV Número XIII - Publicação realizada em 19/10/2021

Profa. Juliana,
Em nome da Sociedade Brasileira de Disfunção Temporomandibular e Dor Orofacial (SBDOF),  agradecemos a gentileza em dispor do seu tempo para compartilhar conosco um pouco do seu conhecimento e experiência.

Eu agradeço a SBDOF por esta oportunidade, fiquei muito lisonjeada com o convite.
 
Professora, você tem como linha de pesquisa o estudo da inflamação na articulação temporomandibular (ATM). Como surgiu o interesse nesse tema?
Esta história iniciou na graduação. Eu sempre achei fascinante a Fisiologia do corpo humano, especialmente a compreensão das funções do Sistema Estomatognático – uma área muito carente de estudos. A especialidade DTM e Dor Orofacial estava iniciando oficialmente no Brasil e seria a oportunidade de trabalhar com a Fisiologia (minha grande paixão) em uma temática clínica desafiadora. Ao finalizar a graduação, eu iniciei o Mestrado na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP-UNICAMP) em Fisiologia Oral sob a orientação da Dra. Cláudia Tambeli, onde iniciei minha trajetória como pesquisadora no desenvolvimento de projetos de pesquisas na linha de dor orofacial. Neste início de trajetória, conheci o Dr. Marcelo Napimoga, que se tornou meu principal parceiro científico e de vida. Juntos, tivemos a oportunidade de montar nosso primeiro laboratório de pesquisa na Universidade de Uberaba onde convergimos Fisiologia e Imunologia para desenvolvimento de projetos científicos voltados para a compreensão da Experiência Dor e para o seu tratamento.
 
Um desses trabalhos foi premiado no IV Congresso Brasileiro de Dor Orofacial. Você poderia nos contar um pouco sobre esse trabalho?Uma grande conquista foi a consolidação de um modelo de estudo de uma condição artrítica degenerativa. Esse modelo tem sido base de vários trabalhos em nosso laboratório para compreensão da transição da dor aguda para a dor crônica considerando o conceito do Sistema Neuroimunológico. O trabalho premiado no IV Congresso Brasileiro de Dor Orofacial foi a padronização de um modelo de estudo in vivo, em que conseguimos demonstrar a ativação de células residentes do sistema nervoso central (SNC) e vias de ativação celular para identificação da transição de uma fase aguda de dor para um estado de dor persistente. Este estudo nos ajudou a consolidar o conceito de que a transição da dor aguda para a dor crônica é resultado de uma resposta neuroimunológica que acontece no SNC e periférico: temática principal do nosso laboratório de pesquisa na Faculdade São Leopoldo Mandic. Conseguimos um financiamento importante da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e a consolidação de colaborações internacionais que resultaram em artigos de alto impacto. Um grande orgulho para todos os alunos, professores e pesquisadores envolvidos nestes estudos que auxiliam a consolidação da pesquisa brasileira em um cenário mundial.
 
O processo doloroso é influenciado por diferentes aspectos dentro de um modelo biopsicossocial. Você poderia nos dar uma breve explicação de como o sistema neuroimunológico é capaz de modificar a experiência dolorosa de um indivíduo?O Sistema Neuroimunológico é um novo conceito em que  entende-se o sistema imunológico como parte do sistema nervoso e um grande tradutor e efetor de condições adversas no corpo humano para a manutenção da sua estabilidade funcional. É uma discussão que vem crescendo na comunidade acadêmica nos últimos anos em diferentes áreas do conhecimento. Em janeiro do ano de 2020, a Academia Americana de Imunologia publicou uma edição especial com 11 revisões de literatura com o objetivo de reconhecer o Sistema Neuroimunológico e chamar a atenção para a necessidade de pesquisas científicas com esta nova perspectiva de processos biológicos. O que impacta esta nova perspectiva em relação ao processo doloroso? Se considerarmos que o sistema imunológico é um grande tradutor, assim como o sistema sensorial, ele responde também à nossa percepção e tem a capacidade de vincular aos sentidos outros aspectos da existência como o pensamento e o comportamento. 

A dor é uma experiência multidimensional que compreende as dimensões sensorial-discriminativa, afetivo-motivacional e cognitiva avaliativa. Em um parceria transdisciplinar internacional (https://doi.org/10.1016/j.neubiorev.2021.06.008), publicamos uma revisão de literatura demonstrando evidências sobre como associações complexas entre os fatores psicossociais e biológicos podem gerar e perpetuar a dor orofacial musculoesquelética com envolvimento desensibilização neuroimunológica, desequilíbrios neuroendócrinos, distúrbios do sono e alterações do sistema de temporização circadiano. Consequentemente, os sistemas de classificação atuais para dor orofacial requerem avaliações psicossociais como parte integrante do processo de diagnóstico multidimensional.

A toxina botulínica foi usada em um dos seus estudos em animais para modulação de uma via nociceptiva associada à artrite da ATM. Baseados nos seus achados, você acredita que possa ser uma opção para tratamento das DTM articulares?
O uso da toxina botulínica (TB) para o tratamento de DTM articulares ainda demanda estudos clínicos e laboratorias mais robustos para que possa ser considerada uma opção terapêutica segura e sem efeitos indesejáveis. Em nossos estudos, demonstramos que a TB, quando aplicada na ATM em um modelo in vivo de artrite, é capaz de diminuir o panus inflamatório induzido pela artrite através da diminuição da ativação de fibras neuronais. No entanto, também foi demonstrado que a TB (mesmo sendo aplicada na ATM) é transportada para o SNC através de fibras neuronais, onde apresenta uma ação nas microglias – os macrófagos do SNC, reduzindo sua ativação pró-inflamatória em situações de dor persistente. Apesar dos resultados apresentarem uma ação positiva da TB, eles são, na verdade, alarmantes. Foi detectado que a TB foi transportada bilateralmente para o SNC, reduzindo a atividade neuronal. O atual questionamento é:se a TB tem um papel imunomodulador resultando em processos reparadores ou se silencia as células residentes do SNC mascarando um quadro degenerativo progressivo. Estes dados foram contemplados com o Prêmio Unilever Hatton Competition and Awards edição de 2020, na reunião Anual da Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica (SBPqO), divisão brasileira da Internacional Association of Dental Research (IADR).
 
Baseado nos seus estudos, como parece ser a associação dos hormônios femininos com a presença de dor temporomandibular?
No final da década de 90, houve muita discussão sobre a temática dimorfismo sexual da dor e esse acabou sendo o tema da minha dissertação de mestrado e tese de doutorado. Demonstramos, em estudos in vivo, que os hormônios esteroidais gonadais -testosterona, estrógeno e progesterona - apresentam um efeito protetor no desenvolvimento da dor induzida na ATM, assim como um ação anti-inflamatória.

Fazendo uma correlação com estudos clínicos publicados, isto significa que mulheres que não fazem uso de contraceptivos orais, nas fases pré-ovulatória e pré-menstrual do ciclo ovariano,em resposta à diminuição de disponibilidade do estrógeno e da progesterona, apresentam um aumento da sintomatologia dolorosa e ficam mais predisponentes a condições inflamatórias.

O interessante neste processo é que, ao mesmo tempo que por um lado a diminuição da disponibilidade de estrógeno e progesterona aumenta a sintomatologia dolorosa , por outro aumenta a expressão de receptores opioides nas fibras neuronais na ATM, tornando este tecido mais responsivo a opióides endógenos e sintéticos.

É importante colocar aqui que estes estudos foram limitados a avaliações de processos inflamatórios agudos. Considerando que a dor orofacial deve ser compreendida em um amplo aspecto biopsicossocial e que os hormônios gonadais femininos apresentam um papel importante no comportamento e padrão de pensamento e prevalências de doenças crônicas degenerativas, mais estudos são necessários para compreensão desta inter-relação.
 
O que vem a seguir para você? Você está trabalhando em algum projeto novo?
Pode nos contar um pouco sobre o seu momento atual dentro da pesquisa científica?Compreender a integração de respostas neuroimunológicas na ativação do SNC em quadros de dor persistente é nosso atual desafio. Nosso objetivo é compreender estas ações para elaboração de estratégias de diagnóstico e tratamento mais efetivas.
Gostaria de expressar os meus agradecimentos a toda a minha equipe e a todos os professores, pesquisadores e alunos envolvidos nesta trajetória científica.
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Profa. Dra. Juliana Trindade Clemente Napimoga

Juliana Napimoga é cirurgiã-dentista, mestre e doutora em Fisiologia Oral pela UNICAMP, livre docente em Fisiologia e Biofísica pela UNICAMP e Bolsista Produtividade em Pesquisa pelo CNPq. Foi docente nas instituições Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Universidade de Uberaba e Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professora de Fisiologia dos cursos de Medicina e Odontologia da Faculdade São Leopoldo Mandic. Coordenadora dos Programas de Pós-graduação Stricto Sensu da SLMANDIC e pesquisadora responsável pelo Laboratory of Neurimmune Pain Research SLMANDIC. Sua linha de pesquisa é direcionada para a Biopatologia Bucal, Dor Orofacial e Inflamação.