Entrevista

Dra. Cibele Dal Fabbro

1 - Dra. Cibele, sabemos que as pesquisas relacionadas à importância do sono, às consequências dos distúrbios do sono e à inserção da odontologia neste contexto são extremamente recentes. Você é uma das pesquisadoras precursoras nesta área. Quando e como surgiu seu interesse por esta linha de pesquisa? Como foi esta evolução e qual o papel do dentista com formação em odontologia do sono atualmente? 

O interesse pelo sono surgiu muito cedo na minha vida profissional. Formei-me no final de 1990 e, em 1992, comecei meu mestrado em Reabilitação Oral na Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP pelo meu interesse na área de dor (na época, fazia parte do departamento de prótese). Durante o mestrado, tínhamos que  cursar não somente prótese total, removível, fixa e “oclusão e disfunção”, como atender pacientes em clínicas de todas as áreas e fazer monografias sobre temas sugeridos pelos professores. Na época, eu morava em São Paulo, mas passava a semana em Bauru e, num final de semana, tive um compromisso familiar que me impediu de viajar no domingo. Quando cheguei na FOB, todos os temas para monografia da área de oclusão e disfunção tinham sido distribuídos e o único que sobrou, porque ninguém queria, era “bruxismo”.  

Quando comecei a fazer o levantamento bibliográfico para essa monografia, descobri um assunto pouco estudado e com muitas controvérsias e lacunas, mas que me apaixonou! E um dos trabalhos que mais me chamou atenção foi uma das primeiras publicações do grupo da Universidade de Montreal, no Canada, coordenado pelo pesquisador Gilles Lavigne, onde acabei fazendo um fellow em 2002 e onde estou agora em 2021 como professora associada e pesquisadora. 

Em 1993, quando precisei definir meu tema de pesquisa de mestrado, acabei optando em trabalhar com Bruxismo do Sono. Meu orientador na época, embora essa não  fosse sua área de pesquisa, concordou que eu fizesse contato com o grupo de sono da UNIFESP em São Paulo, já que em Bauru não havia ainda essa linha de pesquisa. Dessa forma, acabei fazendo a coleta de dados do meu mestrado na UNIFESP, em parceria com a FOB-USP. Esse foi o início da minha trajetória na área de sono, junto ao grupo da UNIFESP, ao qual estou ligada até hoje, e também no Instituto do Sono. 

Em termos de evolução dos estudos do sono na odontologia, eu diria que essa começou com as pesquisas sobre bruxismo, mas, rapidamente, foi tomada também pelos estudos fisiopatológicos e sobre o tratamento da apneia obstrutiva do sono (AOS), tanto em adultos, como em crianças. O primeiro congresso internacional de sono que fui, em 1995 em Nassau/ Bahamas, foi onde esse universo começou a se abrir pra mim, mas confesso que tudo era ainda muito rudimentar e inicial (não sabíamos muita coisa e eu não era a única!).  Acredito que foi a partir do ano 2000 que as coisas começaram a crescer e mais pesquisas foram publicadas. No Brasil, dentro da Associação Brasileira do Sono (ABS), um pequeno grupo de dentistas do qual eu fazia parte, propôs, em 2005, a criação da COABS (comissão odontológica da ABS), que veio dar lugar, com o tempo, à Associação Brasileira de Odontologia do Sono (ABROS), fundada em 2012. 

Atualmente, o papel do CD na odontologia do sono inclui uma abordagem ampla através da qual devemos saber reconhecer distúrbios do sono e/ou fatores de risco, informar e orientar o paciente e encaminhar, quando necessário, tratar a AOS em adultos com aparelhos intraorais (AIO) como parte da conduta conjunta com o médico, dando seguimento e acompanhamento do tratamento, inclusive para manejo de potenciais efeitos colaterais. É também atribuição do CD o tratamento da AOS com cirurgia ortognática no adulto, assim como a abordagem da AOS na infância com ortodontia e ortopedia funcional dos maxilares. Ainda, o CD atua na abordagem preventiva da AOS no adulto, corrigindo e direcionando o crescimento e desenvolvimento do 1/3 inferior da face durante a infância no intuito de reduzir um dos importantes fatores de risco da AOS, o hipo-desenvolvimento do 1/3 inferior da face, na forma de hipoplasia de maxila, mordida aberta, mordida cruzada e retrognatia mandibular. Não podemos esquecer ainda da importante abordagem clínica de pacientes com bruxismo do sono, tanto na infância, como na idade adulta.  


2 - Recentemente, você publicou dois artigos sugerindo uma investigação abrangente sobre possíveis fatores etiológicos relacionados ao bruxismo do sono. De acordo com a literatura mais recente, o que o dentista deve investigar durante a anamnese destes pacientes? 

Contrário ao que se pensava no passado, o bruxismo do sono não é, na maioria dos casos, idiopático. Existem inúmeras comorbidades associadas a ele, principalmente em adultos, tais como AOS, insônia, movimentos periódicos dos membros, síndrome das pernas inquietas, doença do refluxo gastroesofágico, epilepsia do sono, distúrbio comportamental de sono REM e doença de Parkinson. Nos dois últimos distúrbios, a literatura tem mostrado que o bruxismo ocorre frequentemente na forma de bater os dentes e esse tipo de bruxismo pode ser um sinal precoce de doenças neurodegenerativas.

Dessa forma, o dentista deve ter em sua anamnese, o tipo e frequência do bruxismo do sono e sintomas associados, e deve aplicar escalas e questionários que avaliam fatores de risco para outros distúrbios, tais como o Stop Bang para acessar risco de AOS e o Índice de Gravidade de Insônia (ISI) para abordar a insônia. Nos casos de alto risco de distúrbios, encaminhar o paciente para o profissional adequado é parte importante da abordagem do profissional de odontologia do sono.

Outro ponto importante é reconhecer quais tratamentos podem ser benéficos ou não para esses pacientes. Por exemplo, devemos ter em mente que uma placa estabilizadora oclusal em acrílico, quando posicionada no arco superior, pode piorar um quadro de AOS. Devemos saber também quais drogas podem ser utilizadas e quais devem ser evitadas, levando em conta o fato que efeitos colaterais podem ser ainda mais danosos para a comorbidade associada ao bruxismo do sono que o paciente apresenta. 

Como exemplos, podemos citar a buspirona, um ansiolítico que apresenta melhora no bruxismo, mas que tem a insônia como efeito colateral, e a gabapentina, um anticonvulsivante que atua bem nos quadros dolorosos crônicos, podendo reduzir bruxismo do sono, mas que, embora possa melhorar a insônia por ter a sonolência como efeito adverso, pode piorar a AOS em homens idosos, segundo pesquisa publicada por Piovezan e colaboradores em 2019 (J Sleep Res). Por outro lado, drogas que tem sido demonstradas por melhorar o tônus muscular para tratar a AOS, como a atomoxetina (inibidor de recaptação de norepinefrina) pode ter um efeito potencializador sobre o bruxismo do sono, embora isso ainda tenha que ser demonstrado (Lavigne G et al. Chest 2021)


3 - A queixa de baixa qualidade de sono é comum entre pacientes portadores de DTM e DOF. O que a literatura nos descreve sobre esta possível associação? 

Sabemos que o sono insuficiente ou fragmentado impacta na piora de quadros dolorosos, assim como a presença de dor impacta em sono de pior qualidade. Em pacientes com DTM e DOF, isso não é diferente, onde a dor aguda pode interferir no sono, principalmente em sua fragmentação, mas é a dor crônica que  pode cronificar o problema do sono e, potencialmente, leva-lo a se configurar num distúrbio do sono. 

Já foi demonstrado que quase metade dos pacientes com dor crônica apresenta distúrbios do sono: quase 40% apresentam insônia e um em cada 3 apresenta AOS ou síndrome das pernas inquietas (Babiloni AH et al. Pain 2020).

Frequentemente, esses pacientes apresentam dificuldade para começar a dormir (aumento na latência do sono), redução da eficiência do sono (tempo dormido por tempo na cama), maior tempo desperto pós o início do sono e aumento no número de despertares breves por hora. Além disso, é importante abordar se o paciente apresenta outras situações atuais que também podem fragmentar o sono e confundir o diagnóstico, tais como outros quadros dolorosos (fibromialgia, síndrome da fadiga crônica, cefaleias), doença do refluxo gastroesofágico, menopausa, outros distúrbios do sono (AOS, síndrome da resistência da via aérea superior, síndrome das pernas inquietas, movimentos periódicos dos membros e insônia) e, ainda, má higiene do sono.

Minha sugestão para o especialista em DTM/DOF é que tenha sempre, em sua anamnese inicial, um arsenal de perguntas ou questionários que permitam abordar o sono do paciente, seus hábitos relacionados a esse, a higiene do sono e as comorbidades que podem interferir nesse mecanismo. É de suma importância a abordagem do sono em pacientes com quadros dolorosos para se evitar cronificar o distúrbio do sono e a dor.

A higiene do sono é parte desse pilar e, através dele, podemos informar o paciente da necessidade de manter horários regulares, hábitos de alimentação distantes do horário de dormir, evitar álcool, atividades estimulantes e alimentos pesados e de difícil digestão à noite, assim como ter um ambiente agradável para o sono.


4 - O tratamento odontológico da AOS é realizado com um aparelho intraoral que promove a estabilização e o avanço mandibular com o objetivo de ampliar o volume da via aérea superior. Quais seriam os efeitos esperados deste aparelho sobre os músculos mastigatórios e sobre a articulação temporomandibular (ATM)? 

Como o próprio nome do aparelho nos diz, seu objetivo é protruir a mandíbula, mantendo-a nessa posição durante toda a noite de sono. Essa posição, embora dentro de limites fisiológicos, não é a posição de repouso que atingimos durante o sono, que certamente é a posição de relaxamento e retroposição mandibular. Para manter a mandíbula protruída durante o sono, os músculos mastigatórios exercerão uma força contrária a essa força protrusiva, na tentativa de levar a mandíbula à posição natural de relaxamento durante o sono. As ATM por outro lado, estarão numa posição de rotação ou translação durante todo o uso.

É importante ressaltar que esse fator não significa necessariamente que a dor ou o desconforto sejam eminentes com o uso de um AIO reposicionador mandibular (AIOAM), mas que cuidados devem ser tomados na sua indicação e acompanhamento. Dessa forma, sugere-se que indivíduos que serão tratados com AIOAM sejam submetidos a uma cuidadosa anamnese para abordar quadros dolorosos, a exame físico e  exames de imagem, como a tomografia de ATM, para visualização das estruturas que podem estar comprometidas. Tais exames nos permitem contraindicar o uso do AIOAM para tratamento prévio da dor por DTM ou, ainda, contraindicar esse tipo de tratamento em definitivo para alguns raros casos.

Na maioria dos casos, entretanto, tais exames permitem uma indicação baseada no quadro basal bem estabelecido inicialmente e permitem abordar com o paciente eventuais desconfortos e alterações que possam ocorrer ao longo do tratamento, comparando-os com o quadro inicial.


5 - Como o dentista especialista em DTM e DOF poderia investigar a qualidade de sono dos seus pacientes? E, caso ele suspeite de um possível distúrbio de sono, quais os cuidados adicionais deveria ter em relação  à prescrição medicamentosa? 

O cirurgião-dentista é um profissional que recebe em sua clínica pacientes com maior frequência que outros profissionais de saúde e pode observar claramente mudanças no padrão comportamental e ligado ao sono nesses indivíduos. Dessa forma, sugerimos que o CD tenha em seu arsenal de anamnese questões relacionadas ao sono para reconhecer fatores de risco associados a distúrbios de sono, como a AOS e a insônia.

Esse reconhecimento pode ser dado tanto pelos sinais e sintomas do distúrbio do sono, como por questionários e inventários pré-estabelecidos. Como exemplos, podemos citar o Stop Bang e o NoSAS para AOS e o Diário do Sono e o Índice de Severidade de Insônia para insônia. Nosso papel, nesse contexto, seria abordar os sinais e sintomas e os fatores de risco e encaminhar esse paciente para uma avalição médica completa.


Desde já agradecemos o seu tempo e atenção dispensados a esta entrevista. Tenho certeza que enriquecerá muito o conhecimento dos nossos especialistas.
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Dra. Cibele Dal Frabbo

- Cirurgiã-Dentista

- Doutora em Ciências (Medicina e Biologia do Sono) - Dept Psicobiologia da UNIFESP – EPM

- Mestre em Reabilitação Oral – Dept. Prótese Dental – FOB/USP

- Especialista em Disfunção Temporomandibular / Dor Orofacial - CFO

- Especialista em Acupuntura – IOT – FMUSP

- Aperfeiçoamento em Periodontia – IEO (Instituto de Ensinos Odontológicos) – Bauru

- Coordenadora da Divisão Odontológica do Instituto do Sono

- Certificada em Odontologia na Medicina do Sono  - Prova da ABS/ABROS

- Fundadora e ex-presidente da ABROS (Associação Brasileira de Odontologia do Sono)

- Research Assistant – Center for Advanced Research in Sleep Medicine, CIUSSS NIM & Faculty of Dental Medicine, Université de Montréal, Canada

- Professora Associada – Université de Montréal, Canada