Caderno SBDOF

Caderno 21 - Cannabis e Dor Orofacial – Caminhos, desafios e perspectivas futuras

Autor: Kadidja Claudia Maia e Machado; Hellíada Vasconcelos Chaves

Uso da medicina canabinoide representa uma área de grande interesse para a prática clínica e permeia a própria história da humanidade. Nos últimos séculos, a Cannabis sativa foi rotulada como uma droga sem efeito medicinal por motivos sociopolíticos e econômicos. Por outro lado, uma série de movimentos sociais trouxe à tona sua aplicabilidade medicinal para além da droga e levou à sua legalização em alguns países devido às suas propriedades terapêuticas. A descoberta do sistema endocanabinoide pela equipe do Professor Raphael Mechoulam na década de 60, com seus receptores, ligantes e enzimas, foi o início da compreensão de como esse sistema regula o funcionamento de variados órgãos e sistemas do corpo humano (CROCQ, 2020; CHARITOS et al., 2022; LEGARE et al., 2022; JOHNSON, COLBY, 2023; ZUARDI, CRIPPA, 2023).

Esse sistema engloba os endocanabinoides (anandamida [AEA] e o 2-araquidonoilglicerol [2-AG]), seus receptores mais estudados - como CB1 - mais presente no sistema nervoso central e CB2 - mais presente no sistema imune, e enzimas responsáveis pela hidrólise desses compostos, como a amida hidrolase de ácidos graxos (FAAH) e a monoacilglicerol lipase (MAGL). Sabe-se que o sistema endocanabinoide interage com outras vias regulatórias como os receptores opioides, vaniloides e de adenosina, e também através das células da glia, como astrócitos e micróglias, participando da transmissão e modulação da nocicepção e da dor. O sistema endocanabinoide desempenha, portanto, um papel fundamental na regulação de uma ampla variedade de processos fisiológicos e comportamentais (ZOU S, KUMAR U, 2018; WANG J, 2019; LOWE et al., 2021; SCHWARZ et al., 2024). 

O sistema endocanabinoide se caracteriza por uma sinalização retrógrada, na qual a comunicação se inicia nos neurônios pós-sinápticos e atua nos terminais pré-sinápticos. Além disso, as substâncias endocanabinoides, como a AEA e o 2-AG, não são armazenadas em vesículas ou células como os neurotransmissores, visto que sua síntese ocorre por ativação de precursores lipídicos presentes na membrana celular e respondem ao aumento dos níveis de cálcio intracelular. AEA e o 2-AG produzidos nos neurônios pós-sinápticos são liberados na fenda sináptica e interagem com os receptores canabinoides nos terminais pré-sinápticos. Essas interações levam a uma redução na liberação de neurotransmissores pelos neurônios pré-sinápticos, modulando a transmissão sináptica e gerando os muitos efeitos clínicos que vêm sendo descobertos (ZOU S, KUMAR U, 2018; PANDEY et al., 2009; LOWE et al., 2021).

À medida que as funções do sistema endocanabinoide são elucidadas, o interesse científico e da população pela cannabis medicinal ganha espaço, pois representam um possível recurso terapêutico para a prática clínica. Atualmente, existem três classes de canabinoides: os endocanabinoides, os fitocanabinoides e os medicamentos sintéticos. Os fitocanabinoides são registrados na ANVISA como produtos à base de cannabis, e cada produto apresenta uma data limite de expiração para comercialização. Tanto os fitocanabinoides quanto os medicamentos sintéticos podem ser obtidos através de empresas nacionais ou por importação, via autorização da ANVISA, e os fitocanabinoides podem também ser obtidos através de Associações ou mesmo do plantio doméstico, conseguido judicialmente. Esses fitocanabinoides são compostos por centenas de componentes, com destaque para o THC (delta-9-tetrahidrocanabidonol) e o CBD (canabidiol), mas também existem formulações com componentes isolados (SHOLLER et al., 2020; DOS SANTOS et al., 2021; SIMEI et al., 2024). 

Atualmente, o Brasil autoriza o uso e a comercialização de fitocanabinoides e medicamentos sintéticos, porém é proibida a produção nacional dos insumos necessários para a sua elaboração. Isso faz com que o custo dos produtos ainda seja relativamente alto. Diante de algumas judicializações, o SUS (Sistema Único de Saúde) em alguns estados do Brasil tem discutido a oferta de medicações para algumas condições clínicas específicas na área médica de psiquiatria. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), tem sido discutida a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo e comercialização de canabinoides com teor de THC inferior a 0,3% – por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e farmacêuticos.

Clinicamente, muitos são os motivos que levam os pacientes a desejarem o uso da cannabis medicinal, como melhora da qualidade do sono, dificuldade de lidar com estresse e ansiedade e controle da dor.  Levanta-se que os canabinoides sejam possibilidades farmacoterapêuticas adjuvantes no manejo da dor, principalmente da dor crônica por mecanismos nociplásticos ou neuropáticos, reduzindo, assim, o consumo de medicações alopáticas. Os efeitos colaterais dos canabinoides podem se fazer presentes, tais como sonolência, distúrbios gastrointestinais e alterações da função motora e da consciência. Dentre as contraindicações, a literatura descreve poucas e geralmente atreladas ao THC, que possui efeitos psicotrópicos, tornando-se desaconselhável para pacientes com algumas doenças neuropsiquiátricas (SAGY et al., 2019; SIHOTA et al., 2020; DOS SANTOS et al., 2020; BHASKAR et al., 2021; HORSTED et al., 2022; KALABA et al., 2022; SOUZA et al., 2022; SIMEI et al., 2024).

Diante disso, o clínico especialista em DTM e Dor Orofacial, ávido por terapias multimodais para manejo de paciente crônicos e refratários, deve lembrar que as tomadas de decisões clínicas são baseadas em evidências científicas, e, assim, evitar o raciocínio translacional reverso. Revisões sistemáticas da literatura ainda apresentam resultados incertos sobre a real eficácia analgésica dos canabinoides, visto que os ensaios clínicos publicados até o momento apresentam significativas limitações, associados a um importante risco de viés (FISHER et al., 2021; GROSSMAN et al., 2021; VOTRUBEC et al., 2022). De fato, até o presente momento, há apenas 6 ensaios clínicos randomizados e controlados para a área da dor orofacial, incluindo estudos na dor dentária aguda (CHREPA et al., 2024), DTM muscular (NITECKA-BUCHTA et al., 2019; WALCZYNSKA-DRAGON et al., 2024), úlceras aftosas recorrentes (UMPREECHA et al, 2023) e dor pós-cirúrgica de terceiro molar (OSTENFELD et al., 2011; KALLIOMÄKI et al., 2013). Apesar de a experiência clínica de alguns profissionais trazer resultados positivos, o que levanta um caminho promissor a ser percorrido, a baixa qualidade ou mesmo a falta de uma maior robustez desses estudos limita a literatura a apoiar conclusões definitivas acerca dos canabinoides no manejo da dor orofacial.

Essa busca por evidências confiáveis e pelo desenvolvimento de combinações terapêuticas adequadas e seguras faz parte de um esforço global. Ensaios clínicos randomizados controlados e revisões sistemáticas são o padrão-ouro para guiar decisões clínicas, e o número limitado desses estudos no campo dos canabinoides na dor orofacial faz com que o potencial terapêutico ainda seja visto com reservas por muitos. O caminho em direção a uma prática bem fundamentada requer a produção constante de dados rigorosos sobre eficácia, segurança, dosagens e interações com outros medicamentos. À medida que esses estudos aumentam, a medicina canabinoide poderá oferecer alternativas mais seguras e embasadas. Embora o progresso seja gradual, ele já está em curso, com muitos países investindo em pesquisa, regulamentação e educação sobre o uso terapêutico da cannabis.
REFERÊNCIAS
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Kadidja Claudia Maia e Machado

  • Cirurgiã-Dentista;
  • Especialista em DTM e Dor Orofacial-ABENO-SP;
  • Mestre em Ciências Faculdade Medicina USP-SP;
  • Doutora em Clínica Odontológica, Universidade Federal do Ceará (UFC);
  • Associada efetiva SBDOF. 
     
 
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Hellíada Vasconcelos Chaves

 
  • Professora Associada do Curso de Odontologia, Universidade Federal do Ceará, Campus de Sobral (UFC-Sobral);
  • Professora Permanente do Mestrado em Ciências da Saúde da UFC-Sobral e do Programa de Pós-Graduação em Odontologia (PPGO-UFC);
  • Coordenadora do NEPDOR (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Dor Orofacial) e do CannDor (Grupo de Estudos em Cannabis e Dor);
  • Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq;
  • Associada efetiva SBDOF.